por Rodrigo Sombra
O povoado de São José do Paiaiá, no sertão baiano, tem 500 moradores, igreja, escola, praça e duas ruas. “Na de cima, mora a elite; na de baixo, a classe trabalhadora”, descreveu o historiador Geraldo Moreira Prado, 71 anos, o filho mais ilustre e ilustrado da terra. De cada dez habitantes de Paiaiá, três são analfabetos. Metade da população vive na pobreza, com renda de pouco mais de 200 reais por família a cada mês. Quatro famílias formam a elite local.
Numa região de casas geminadas, ruas de pedra e terra, poucos empregos e quase nenhum saneamento, a soberba taxa de 200 livros por habitante – a média nacional não chega a cinco – é a obra local mais frondosa, graças à Biblioteca Comunitária Maria das Neves Prado. Está sediada em um rudemente majestoso prédio de três andares, o único daquela área da caatinga. Já foi apelidado de “Empire State of Paiaiá”, reunindo os quase 100 mil livros, segundo a contagem oficial, da autodeclarada “maior biblioteca rural do mundo”.

Casou-se. E depois se descasou, momento em que viu a necessidade de se desfazer de uma coleção de então 30 mil livros. Tentou vendê-la, mas sebo nenhum quis lhe pagar a contento. Pensou em doá-la para uma universidade pública, mas as tratativas não caminharam bem. Lembrou-se da querida terra natal, São José do Paiaiá, um povoado do município de Nova Soure, a 250 quilômetros de Salvador.
Contatou um sobrinho adolescente morador de Paiaiá, alugou uma casa e despachou a primeira leva de 10 mil livros, transportados num caminhão. Passava das quatro e meia da manhã quando José Arivaldo Prado – o sobrinho de Geraldo, conhecido como Vadinho – deixou o forno da padaria onde trabalhava para assistir ao desembarque dos livros. Juntou gente para acompanhar a novidade. As primeiras centenas de volumes foram abrigadas na garagem da casa alugada.
O sucesso da operação estimulou um segundo lote de livros, algo perto dos 12 mil exemplares. Mas a vizinhança fora alertada pelo Jornal Nacional sobre um furto de obras raras ocorrido em 2003 na Biblioteca do Itamaraty, na região central do Rio de Janeiro, a mais de 1 700 quilômetros dali. Quando uma senhora assistiu à chegada de mais livros – itens raros no sertão –, tratou de denunciar à polícia, convicta de que se tratava das obras furtadas do Itamaraty que vira na televisão.
Desfeito o equívoco, a recém-transferida biblioteca teve de enfrentar o pároco local, ouriçado pela procura de obras como Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Jorge Amado. Abriu o sermão numa manhã de domingo advertindo os fiéis sobre a maledicência dispersa nas estantes de aço pecaminosas da casa vizinha à paróquia. Apesar das resistências religiosas e policiais, os demais livros foram enviados pouco a pouco. A biblioteca comunitária ganhou vida e foi batizada com o nome de uma tia do historiador que se dedicara a lecionar no povoado, professora de formação autodidata que era.

Cajueirinho, Carrapatinho, Pau de Colher, Cabeleiro e Melancia são povoados vizinhos que mandam alunos para a escolinha de xadrez, para o ateliê de pintura ou para cursos como “Higienização e acondicionamento do acervo Professor Geraldo Prado”, oferecido em dois módulos.
A organização das estantes às vezes surpreende. A Divina Comédia divide prateleira com aMetodologia Aplicada à Administração. Elogio da Sombra, de Jorge Luis Borges, é vizinho deInternet Truques Espertos: Segredos Inteligentes Revelados. A biblioteca possui alguns volumes raros, como a primeira edição de Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, de 1933, e as obras completas de Molière, com data de impressão de 1732.
Sem apoio da prefeitura de Nova Soure, dependente dos inconstantes repasses do programa do Ministério da Cultura, a biblioteca é deficitária e recebe colaborações de bom grado.

“Informado há tempos a respeito dela por nossa amiga Walnice Nogueira Galvão (que aliás teve a gentileza de me acompanhar à empresa transportadora), avaliei desde logo o alcance e a importância dessa obra cultural, devida à sua iniciativa generosa e clarividente; e tencionei colaborar de algum modo, o que faço agora com prazer e é a oportunidade de manifestar a minha admiração pelo seu trabalho.”
Outra frase atribuída a Antonio Candido já havia sido estampada na fachada da biblioteca. Em azul, lia-se: “O socialismo é uma doutrina totalmente triunfante no mundo.” “Eu ia até botar uma do Marx, mas aí achei que já era dar muita bandeira”, acautelou-se Geraldo Prado. Na última reforma da biblioteca, um pintor conhecido como Magnata fez pouco caso da encomenda – repintar o que ali já estava e adicionar uma proverbial citação de Che Guevara. Pediu um adiantamento pela primeira demão de tinta, embolsou o dinheiro e sem aviso prévio comprou um bilhete só de ida para São Paulo, deixando a fachada da Biblioteca Maria das Neves branca como lhe sugere o nome.
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